Rebatendo os argumentos favoráveis ao “pedágio” da internet
Na consulta da Anatel (Tomada de Subsídios n. 13/2023) sobre a política de compartilhamento de custos, em regra apenas as grandes operadoras de telecomunicação mostraram-se favoráveis à proposta de compartilhamento de custos.
Na Europa, em carta assinada por diversas big telcos, os mesmos argumentos foram utilizados: as receitas das operadoras têm caído, e os vilões da infraestrutura são os provedores de conteúdos na camada de aplicações. Mas será que os argumentos fazem sentido?
Revisamos abaixo as premissas, com o que disseram na consulta as grandes operadoras, com outros argumentos técnicos contrários.
Argumento das “grandes teles” 1: As grandes teles tem perdido receita mesmo com o crescimento da Internet
O que disseram as “grandes teles” na consulta?
“Ocorre que, em contrapartida aos significativos e contínuos investimentos na expansão das redes de telecomunicações, as receitas auferidas pelas prestadoras de telecomunicações se encontram praticamente estagnadas em todo o mundo” - Tim S.A.
“As falhas de mercado geradas pela atuação dos Provedores de SVA impactam diretamente o retorno econômico da prestação de serviços de telecomunicações, dificultando a redução dos gaps de conectividade e da capacidade de investimentos” - Telefônica S.A.
“As empresas de telecomunicações não conseguem ser remuneradas pelo aumento de tráfego em suas redes, ao passo que este aumento traz a necessidade de maiores investimentos e eleva custos operacionais” - Oi S.A.
Como se vê, o argumento aqui é de que as receitas das teles se encontram estagnadas, não crescem com a internet, o que cria uma assimetria entre aqueles que investem na conectividade e aqueles que "lucram" com ela.
O problema é que essa argumentação não se sustenta nem no quadro brasileiro nem no internacional.
Ponto 1: As receitas das “grandes teles” têm crescido, não estão estagnadas. De acordo com a Conexis Brasil Digital, sindicato que reúne algumas das maiores operadoras de telecomunicações do país, a receita das telecoms em 2022 foi de R$ 277,7 bilhões.
Ressalta-se que, ainda que em ritmo menos acelerado, o setor de telecomunicações ainda apresenta um crescimento positivo, de acordo com informações da Anatel, sobretudo com relação à demanda por acesso à internet de banda larga.
É ainda importante lembrar que o setor de telecomunicações é um dos mais rentáveis da economia, conforme dados da Valor Investe, listando os 10 setores com maior rentabilidade total no período de 2017 a 2022.
Além disso, é fundamental considerar que a camada de infraestrutura é uma das que recebe pesados investimentos e incentivos governamentais,tendo, no Brasil, desde 2020 recebido R$ 20 bilhões apenas do Ministério das Comunicações.
No Brasil, no 5G as receitas líquidas das grandes operadoras não param de crescer. É o caso, ilustrativamente, da Tim, campeã do setor TI & telecom de Valor 1000. De acordo com levantamento, apenas em 2023, o lucro líquido subiu 124% (cerca de R$ 626 milhões) e a receita líquida cresceu 9,2% (cerca de 5,86 bilhões), comparado ao mesmo período do ano anterior.
Argumento das “grandes teles” 2: As “grandes teles” investem sozinhas na infraestrutura da rede
O que disseram as “grandes teles” na consulta?
“Até o momento, os investimentos em infraestrutura de telecomunicações, determinantes para os avanços econômicos e sociais percebidos, foram exclusivamente realizados pelas detentoras de infraestrutura” - Claro S.A.
“Para os fins da presente Tomada de Subsídios, contudo, a TIM destaca que a utilização abusiva dos recursos de rede envolve a geração de tráfego significativa e massiva, sem a devida remuneração pelos investimentos realizados na construção, expansão e manutenção da rede” - Tim S.A.
“O modelo evolutivo das telecomunicações no Brasil é exemplar, no entanto, apesar de todo o ecossistema digital se beneficiar da expansão com base em obrigações, as necessidades de investimentos recaem apenas sobre as provedoras de infraestrutura de telecomunicações” - Conexis
De fato, é expressivo o investimento das telecoms em infraestrutura, até porque este é o mercado pelo qual elas são responsáveis.
Mas as big teles não investem sozinhas, e só na última década mais de U$S 800 bilhões foram investidos por grandes provedores de internet na infraestrutura global de telecomunicações.
Quem mais investe são as maiores empresas provedoras de aplicações e conteúdos, em especial as que mais dependem da internet para seus negócios. A empresa Meta, sozinha, investiu mais de U$S 100 bilhões em OPEX e CAPEX na infraestrutura no mundo. No Brasil, projetos como o “OpenCDN” do CGI.br e do NIC.br vêm contribuindo de forma significativa com a descentralização do tráfego da internet no Brasil, com operações em Manaus (AM), Salvador (BA), Brasília (DF), Belo Horizonte (MG) e Recife (PE), e brevemente, em Belém (PA) e Cuiabá (MT).
Outro investimento é da Netflix, que também investiu US$ 60 bilhões nos últimos cinco anos em diversos países, de modo que as despesas suportadas pelas telecoms também reduzem.
E por que ambas as camadas da internet investem em infraestrutura? Porque foi criada uma lógica de rede livre e aberta, baseada na neutralidade de rede.
É o caso das CDNs (“Rede de Entrega de Conteúdo”, em inglês), que recebem grandes investimentos de diversos provedores de aplicações de internet que, ao acelerarem a entrega do conteúdo, levando-o mais para perto do usuário final, retiram o “peso” do tráfego em rede. É um sistema que se retroalimenta. O mercado de CDNs, fortemente investido não apenas por “big techs”, mas por diversos outros provedores de conteúdo, projeta um crescimento de U$S 36,5 bilhões até 2028.
Argumento das “grandes teles” 3: As “big techs” ferem os direitos dos usuários
O que disseram as “grandes teles” na consulta?
“A aparição de grandes plataformas como espaços públicos de troca de informações e comércio online traz riscos aos direitos dos usuários , fluxos de informação e à participação da população” - Vrio Corp.
“Contudo, este tipo de mercado pode apresentar assimetria comercial se um dos lados tiver elevado poder de mercado, o que poderá acarretar a cobrança de valores mais elevados a outros usuários” - Telefônica S.A.
“O consumidor tende a atribuir a responsabilidade por problemas relacionados à qualidade ou instabilidade da conexão ao provedor de telecomunicações, mesmo quando o problema está relacionado a um SVA que utiliza a infraestrutura da rede de telecomunicações” - Conexis
É preciso interpretar adequadamente as previsões contidas na Lei Geral de Telecomunicações (Lei n. 9.472/1997 ou LGT). O SVA (Serviço de Valor Adicionado) é qualquer serviço extra à atividade principal de telecomunicações, tais como TV e internet, que podem ser ofertados por operadoras de modo geral.
As “big teles” argumentam a favor da possibilidade da Anatel criar obrigações para as SVAs, ao interpretarem que estas “ferem os direitos dos usuários”. Logo, nos termos do §2º, do art. 61, LGT, isso autorizaria a Anatel a intervir.
A lógica não se sustenta.
Primeiramente, há investimentos dos provedores na infraestrutura, como visto acima. Além disso, a camada de SVA gera valor para Internet, que sozinha não é atrativa para o usuário final. Geração de demanda não pode ser confundida com ferir direitos dos usuários.
Além disso, entender que a mera existência de um fluxo expressivo de dados constitui algo capaz de “ferir direitos dos usuários” é no mínimo questionável. O grande volume e o consumo demandado é o que faz o próprio setor de telecomunicações ser atrativo e exigir maiores investimentos.
Argumento das “grandes teles” 4: A Anatel tem competência para aprovar a regulamentação do compartilhamento de custos
O que disseram as “grandes teles” na consulta?
“Nesse sentido, a Oi entende que essas competências já são suficientes para a Anatel regular a relação entre operadoras de telecomunicações e empresas SVA” - Oi S.A.
“Portanto, verifica-se que as competências legais da ANATEL são suficientes para regulamentar a possibilidade de se estabelecer o compartilhamento de investimentos, por usuários massivos e detentores da rede” - Tim S.A.
“Considerando o dinamismo imposto pela economia digital, é importante que a ANATEL aproveite este cenário para potencializar suas competências, adotando medidas que favoreçam a agilidade na identificação e mitigação das falhas no mercado de plataformas digitais” - Telefônica S.A.
A Anatel não tem competência para criar obrigações para as SVAs. Se tiver competências, é para criar obrigações para as operadoras de telecomunicações.
Podemos ver o exemplo da lista telefônica. Gerar listas telefônicas, no período pré-internet, exigia que essa camada de serviços acessasse os dados sob guarda das operadoras de telecomunicações. Aqui cabia à Anatel estabelecer obrigações no sistema: obrigar as teles a fornecer os dados, para que as listas fossem geradas.
A lógica inversa não se sustenta: não é a Anatel que tem competência para impor obrigações à camada de SVA.
A regra é clara, claríssima: SVA não se confunde com telecomunicações. Assim, nos termos do §1º do art. 61, LGT, o SVA “não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição”.
Se a SVA não se confunde com telecomunicações, a Anatel não tem hoje competência administrativa e legal para impor obrigações na camada de SVA. Essa é a base racional de uma agência reguladora, que regula o que é da sua competência, exclusivamente.
Não bastasse a Lei Geral das Telecomunicações, o Marco Civil da Internet ainda institui o essencial princípio da neutralidade de rede. Consoante art. 9º, o “responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”.
Significa dizer com isso que uma internet livre e aberta não permite que dados sejam discriminados pelo seu conteúdo, exceto em casos muito, mas muito restritos, o que não é o caso da proposta de compartilhamento de custos.
Argumento das “grandes teles” 5: As “big techs” criam uma demandam desproporcional na rede
O que disseram as “grandes teles” na consulta?
“Usuários provedores de SVA atualmente utilizam de maneira desproporcional a infraestrutura de telecomunicações, um cenário que não foi (nem poderia ter sido) previsto no momento de elaboração da LGT e MCI” - Claro S.A.
“O tráfego massivo de conteúdo em vídeo, por exemplo, com destaque para altíssimas resoluções (como 4k), tende a sobrecarregar as redes de telecomunicações, exigindo que as prestadoras invistam cada vez mais sem qualquer tipo de contrapartida por parte dos grandes geradores desse tráfego” - Tim S.A.
“Os provedores de conteúdo e plataformas digitais, como as grandes empresas de tecnologia ( big techs ), frequentemente consomem grandes quantidades de recursos de rede, representando uma parcela significativa do tráfego total” - Conexis
Como destacado, os investimentos feitos pelos provedores de SVA na própria infraestrutura das telecomunicações faz com que a demanda e o uso do tráfego de dados seja reduzido de maneira exponencial.
Além do mais, se o volume do consumo de dados é alto, isso não é uma culpa própria dos provedores de aplicações de internet, mas sim um mero reflexo do comportamento e estilos adotados por consumidores finais. Caso este volume não crescesse, por sinal, os importantes incentivos e benefícios que o setor de telecomunicações recebe jamais existiriam. Se hoje há um grande estímulo pelo aumento da infraestrutura do 5G, isso é consequência direta do consumo exercido pelas pessoas.
Ainda, é preciso colocar os pingos nos is com relação às diferentes camadas dessa infraestrutura. As redes móveis e as redes de internet fixa representam padrões distintos e estruturas independentes entre si, o que torna o argumento de sobrecarga ainda mais tendencioso e indevido.
Por essas razões, é preciso dizer não à política de compartilhamento de custos na internet. Não há argumentos capazes de sustentar essa medida.